Vontade de comer que se confundia com a fome

        Nos dias em que a fome e a vontade de comer eram senhoras de nossas vidas cinzentas, sentíamos felicidade se houvesse um gole de leite e um punhado de açúcar. Eram esses os nossos mais profundos desejos naqueles dias de miséria que entranharam em nossas almas e deixou-nos insanas até o momento de agora.
        Era hábito ficarmos sem companhia adulta, com seis e sete anos que tínhamos, éramos as mais donas da casa por quase todo o dia e parte da noite. Pai e mãe no trabalho, submetidos a esse sacrifício para pagar as contas e comprar algum alimento que matasse nossa fome insaciável.
        Mas, veja você... a vontade de comer com a fome de um molequinho é muito pior que só a fome de um adulto. O adulto percebe que seu estômago está vazio, que necessita de alimento para viver, mas o molequinho não. Ele sente fome e vontade de comer ao mesmo tempo, e não consegue distinguir essa maldição. É um sofrimento dobrado, ele pensa que está com vontade de comer, mas não sabe que está com fome.
        Minha mãe trabalhava em padaria chique, lá do Jardins, bairro nobre de São Paulo, onde as pessoas ricas quase não pisavam na calçada, só pisavam em alguns pedacinhos para logo pisar dentro de seus automóveis novos, grandes e cheirosos ou saltarem deles para logo adentrarem seus luxuosos apartamentos ou casas. Minha mãe, mais um bocado de trabalhadores, empregados desta gente rica é quem gastava o concreto das calçadas do Jardins.
        Um dia minha mãe ganhou de algum chefe da padaria chique, uns pãezinhos redondos, decorados com cortes diferentes. Eram bonitos e brilhantes, pareciam deliciosos e prontos para serem devorados por nós, que ficávamos em casa confundindo a fome e a vontade de comer. Mas infelizmente os pães não podiam ser devorados... Por quê?! Não vai acreditar... eram todos envernizados! Todo envolto com um esmalte transparente e brilhoso chamado de verniz! Na verdade eram mesmo pães reais, mas duros como pedra e envenenados com o tal esmalte.
        Minha mãe os colocou em cima da mesa azul da copa, dentro de uma panela de barro que havia ganhado da madrinha de minha irmã mais nova, a dona Lúcia, a panela estava até com o cabo quebrado de quando teve uma queda, mas ainda estava servindo de enfeite por causa das flores que levava pintadas em sua lateral.
        Mais um dia chega, vão todos trabalhar e ficamos nós duas de seis e sete anos vividos, com uma baita vontade de comer que se confundia com a fome... Essa baita vontade ia aumentando e o dia não passava e o pão envernizado brilhando dentro da panela de barro em cima da mesa azul. Brincávamos de esconde-esconde, de pega-pega, de pular corda, de desenhar, de provocar o cachorro e de tantas outras coisas, mas a vontade de comer que se confundia com a fome não passava de jeito nenhum.
        Os pães em cima da mesa azul dentro da panela de barro foram ficando mais bonitos, até podíamos sentir o cheiro dos pães, foi então que tivemos uma ideia: raspar o verniz, assim poderíamos comê-lo sem morrer.
        Raspamos e fomos roendo cada pequena parte daquele pão, parecia torta de morango, ora de limão. Não tinha manteiga, nem chá, café ou leite, mas tinha água. A água parecia vitamina de abacate com leite e açúcar... foi a nossa mais gostosa refeição!

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